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Eurico o presbytero by Alexandre Herculano
Nenhum de vós ouse reprovar os hymnos compostos em louvor de Deus.
Concilio de Toledo IV. can. 13.
Muitas vezes, pela tarde, quando o sol, transpondo a bahia de Carteia, descia affogueiado para a banda de Mellaria, dourando com os ultimos resplendores os cimos da montanha pyramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a fluctuante stringe o presbytero Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados á beira-mar. Os pastores que o encontravam, voltando ao povoado, diziam que, ao passarem por elle e ao saudarem-no, nem sequer os escutava e que dos seus labios semi-abertos e tremulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas, semelhante ao ciciar da aragem pelas ramas da selva. Os que lhe espreitavam os passos, nestes largos passeios da tarde, viam-no chegar ás raizes do Calpe, trepar aos precipicios, sumir-se entre os rochedos e apparecer, por fim, lá ao longe, immovel sobre algum pincaro requeimado pelos soes do estio e poido pelas tempestades do inverno. Ao lusco-fusco, as amplas pregas da stringe d'Eurico, branquejando movedi?as á mercê do vento, eram o signal de que elle estava lá, e, quando a lua subia ás alturas do céu, esse alvejar de roupas tremulas durava, quasi sempre, até que o planeta da saudade se atufava nas aguas do Estreito. D'ahi a poucas horas, os habitantes de Carteia que se erguiam para os seus trabalhos ruraes antes do alvorecer, olhando para o presbyterio, viam, através dos vidros corados da solitaria morada de Eurico, a luz da lampada nocturna que esmorecia, desvanecendo-se na claridade matutina. Cada qual tecia ent?o sua novella ajudado pelas cren?as da supersti??o popular: artes criminosas, tracto com o espirito mau, penitencia de uma abominavel vida passada e, até, a loucura, tudo serviu successivamente para explicar o proceder mysterioso do presbytero. O povo rude de Carteia n?o podia entender esta vida d'excep??o, porque n?o percebia que a intelligencia do poeta precisa de viver n'um mundo mais amplo do que esse a que a sociedade tra?ou t?o mesquinhos limites.
Mas Eurico era como um anjo tutelar dos amargurados. Nunca a sua m?o benefica deixou de estender-se para o logar em que a afflic??o se assentava; nunca os seus olhos recusaram lagrymas que se misturassem com lagrymas d'alheias desventuras. Servo ou homem livre, liberto ou patrono, para elle todos eram filhos. Todas as condi??es se livelavam onde elle apparecia; porque, pae commum daquelles que a providencia lhe confiara, todos para elle eram irm?os. Sacerdote do Christo, ensinado pelas largas horas de intima agonia, esmagado o seu cora??o pela suberba dos homens, Eurico percebera, emfim, claramente que o christianismo se resume em uma palavra-fraternidade. Sabía que o evangelho é um protesto dictado por Deus, para os seculos, contra as vans distinc??es que a for?a e o orgulho radicaram neste mundo de lodo, d'oppress?o e de sangue; sabía que a unica nobreza é a dos cora??es e dos entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela.
Pouco a pouco, a severidade dos costumes do pastor de Carteia e a sua beneficencia, t?o meiga, t?o despida das insolencias que costumam acompanhar e encher d'amargor para os miseraveis a piedade hypocrita dos felizes da terra; essa beneficencia que a religi?o chamou caridade, porque a linguagem dos homens n?o tinha palavra que exprimisse rigorosamente um affecto revelado á terra pela victima do Calvario; essa beneficencia que a gratid?o geral recompensava com amor sincero tinha desvanecido gradualmente as suspeitas odiosas que o proceder extraordinario do presbytero suscitara a principio. Emfim, certo domingo em que, tendo aberto as portas do templo, e havendo já o psalmista entoado os canticos matutinos, o ostiario buscava cuidadoso o sacerdote, que parecia ter-se esquecido da hora em que devia sacrificar a hostia do cordeiro e aben?oar o povo, foi encontrá-lo adormecido juncto á sua lampada ainda accesa e com o bra?o firmado sobre um pergaminho cuberto de linhas desiguaes. Antes de despertar Eurico, o ostiario correu com os olhos a parte da escriptura que o bra?o do presbytero n?o encobria. Era um novo hymno no genero daquelles que Isidoro, o celebre bispo de Hispalis, introduzira nas solemnidades da igreja goda. Ent?o o ostiario entendeu o mysterio da vida errante do pastor de Carteia e as suas vigilias nocturnas. N?o tardou em espalhar-se na povoa??o e nos logares circumvizinhos que Eurico era o auctor de alguns canticos religiosos transcriptos nos hymnarios de varias dioceses, e uma parte dos quaes brevemente foi admittida na propria cathedral d'Hispalis. O caracter de poeta tornou-o ainda mais respeitado. A poesia, dedicada quasi exclusivamente entre os wisigodos ás solemnidades da igreja, sanctificava a arte e augmentava a venera??o publica para quem a exercitava. O nome do presbytero come?ou a soar por toda a Hespanha, como o de um successor de Draconio, de Merobaude e de Orencio.
Desde ent?o ninguem mais lhe seguiu os passos. Assentado nos alcantis do Calpe,vagabundo pelas campinas vizinhas ou embrenhado pelas selvas sertanejas, deixaram-no tranquillo embalar-se nos seus pensamentos. Na conta de inspirado por Deus, quasi na de propheta, o tinham as multid?es. N?o gastava elle as horas que lhe sobejavam do exercicio de seu laborioso ministerio n'uma obra do Senhor? N?o deviam esses hymnos da soledade e da noite derramar-se como um perfume ao pé dos altares? N?o completava Eurico a sua miss?o sacerdotal, revestindo a ora??o das harmonias do céu, estudadas e colhidas por elle no silencio e na medita??o? Mancebo, o numeroso clero das parochias vizinhas considerava-o como o mais veneravel entre os seus irm?os no sacerdocio, e os velhos procuravam na sua fronte, quasi sempre carregada e triste, e nas suas breves mas eloquentes palavras o segredo das inspira??es e o ensino da sabedoria.
Mas, se os que o acatavam como um predestinado soubessem qu?o negra era a predestina??o do poeta, porventura que essa especie de culto de que o cercavam se converteria em compaix?o ou antes em terror. Os hymnos t?o suaves, t?o cheios d'unc??o, t?o intimos, que os psalmistas das cathedraes de Hespanha repetiam com enthusiasmo eram como o respirar tranquillo do somno da madrugada que vem depois de arquejar e gemer de pesadello nocturno. Rapido e raro passava o sorrir nas faces de Eurico; profundas e indeleveis eram as rugas da sua fronte. No sorriso reverberava o hymno pio, harmonioso, sancto dessa alma, quando, alevantando-se da terra, se entranhava nos sonhos de um mundo melhor. ás rugas, porém, da fronte do presbytero, semelhantes ás vagas varridas pelo noroeste, respondia um canto lugubre de colera ou desalento, que rebramia lá dentro, quando a sua imagina??o, cahindo, como a aguia ferida, das alturas do espa?o, se rojava pela morada dos homens. Era este canto doloroso e tetrico, o qual lhe transsudava do cora??o em noites n?o dormidas, na montanha ou na selva, na campina ou no estreito aposento, que elle derramava em torrentes de amargura ou de fel sobre pergaminhos que nem o ostiario nem ninguem tinha visto. Estes poemas, em que palpitava a indigna??o e a dor de um animo generoso, eram o Gethsemani do poeta. Todavia, os virtuosos nem sequer o imaginavam, porque n?o perceberiam como, tranquilla a consciencia e repousada a vida, um cora??o póde devorar-se a si proprio, e os maus n?o criam que o sacerdote, embebido unicamente em suas esperan?as credulas, em suas cogita??es d'além do tumulo, curasse dos males e crimes que roíam o imperio moribundo dos wisigodos; n?o criam que tivesse um verbo de colera para amaldic?oar os homens aquelle que ensinava o perd?o e o amor. Era por isto que o poeta escondia as suas terriveis inspira??es. Monstruosas para uns, objecto de ludibrio para outros, n'uma sociedade corrupta, em que a virtude era egoista e o vicio incredulo, ninguem o escutara ou, antes, ninguem o entenderia.
Levado á existencia tranquilla do sacerdocio pela desesperan?a, Eurico sentira a principio uma suave melancholia refrigerar-lhe a alma requeimada ao fogo da desdita. A especie de torpor moral em que uma rapida transi??o de habitos e pensamentos o lan?ara pareceu-lhe paz e repouso. A ferida affizera-se ao ferro que estava dentro della, e Eurico suppunha-a sarada. Quando um novo affecto veio espremê-la é que sentiu que n?o se havia cerrado e que o sangue manava ainda, porventura, com mais for?a. Um amor de mulher mal correspondido a tinha aberto: o amor da patria, despertado pelos acontecimentos que rapidamente succediam uns aos outros na Hespanha despeda?ada pelos bandos civis, foi a m?o que de novo abriu essa chaga. As dores recentes, avivando as antigas, come?aram a converter pouco a pouco os severos principios do christianismo em flagello e martyrio daquella alma, que, a um tempo, o mundo repellia e chamava e que nos seus transes d'angustia sentia escripta na consciencia com a penna do destino esta senten?a cruel:-nem a todos dá o tumulo a bonan?a das tempestades do espirito.
As scenas de dissolu??o social que naquelle tempo se representavam na Peninsula eram capazes de despertar a indigna??o mais vehemente em todos os animos que ainda conservavam um diminuto vestigio do antigo caracter godo. Desde que Eurico trocara o gardingato pelo sacerdocio, os odios civís, as ambi??es, a ousadia dos bandos e a corrup??o dos costumes haviam feito incriveis progressos. Nas solid?es do Calpe tinha reboado a desastrada morte de Witiza, a enthronisa??o violenta de Ruderico e as conspira??es que amea?avam rebentar por toda a parte e que a muito custo o novo monarcha ía affogando em sangue. Ebbas e Sisebuto, filhos de Witiza, Oppas, seu tio, successor de Siseberto na sé de Hispalis, e Juliano, conde dos dominios hespanhoes nas costas d'Africa, do outro lado do Estreito, eram os cabe?as dos conspiradores. Unicamente o povo conservava aínda alguma virtude, a qual, semelhante ao liquido transvasado por cendal delgado e gasto, escoara inteiramente atravez das classes superiores. Opprimido, todavia, por muitos generos de violencias, esmagado debaixo dos pés dos grandes que luctavam, descrera por fim da patria, tornando-se indifferente e covarde, prestes a sacrificar a sua existencia collectiva á paz individual e domestica. A for?a moral da na??o tinha, portanto, desapparecido, e a for?a material era apenas um phantasma; porque, debaixo das lorigas dos cavalleiros e dos saios dos pe?es das hostes n?o havia sen?o animos gelados, que n?o podiam aquecer-se ao fogo do sancto amor da terra natal.
Com a profunda intelligencia de poeta, o Presbytero contemplava este horrivel espectaculo de uma na??o cadaver e, longe do bafo empestado das paix?es mesquinhas e torpes daquella gera??o degenerada, ou derramava sobre o pergaminho em torrentes de fel, d'ironia e de colera a amargura que lhe trasbordava do cora??o ou, recordando-se dos tempos em que era feliz porque tinha esperan?a, escrevia com lagrymas os hymnos de amor e de saudade. Das elegias tremendas do Presbytero alguns fragmentos que duraram até hoje diziam assim:
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo II by Alexandre Herculano
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo VII by Alexandre Herculano
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 08 by Alexandre Herculano
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